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Reflexões sobre literatura para crianças e jovens

É muito interessante a questão ovo ou galinha acerca dos livros de literatura infantil: o que surgiu primeiro, o mote ou a história? Defendemos uma ideia ou queremos desenvolver uma narrativa? E ainda: literatura infantil é menos literatura?


A partir do convite da Mariana e da Carolina para o Bondelê, fui pensando em como surgiu a ideia para criação do meu primeiro livro A Menor Ilha do Mundo (ed. Peirópolis, 2010): andando numa praia, pensando em nada especificamente nem sequer em escrever um livro para crianças. Perto do ponto onde quebravam as ondas, vi uma ilhota pequenina com uma única árvore "em cima". A menor ilha do mundo. Continuei andando. Quando cheguei do outro lado da praia, percebi que tinha inventado uma história que parecia bacana. Subi para o quarto e anotei num caderno que tenho sempre por perto. Com o tempo, as anotações foram criando forma, tomando fôlego. Mandei para algumas pessoas, o que antes era um punhado de ideias na minha cabeça, um documento anexado em word com título e estrutura de história.


No trabalho artesanal de revisão, corte, reescrita, fui percebendo que havia ali a possibilidade de tocar numa questão delicada que via nos atendimentos no meu consultório e, por que não, na vida: manter em segredo questões importantes, em geral, tem "poder de ímã" para outros tantos núcleos conflitivos. Poder nomear aumenta a possibilidade de produzir sentido para cada um de nós. Guardar um segredo não é nocivo. O que me parece ruim é pensar que não se pode compartilhar com ninguém ou de nenhuma forma. Era isto que a ilha, personagem do meu primeiro livro, não sabia. E nem eu, quando comecei rascunhar essa história. A ilha, no começo, não era metáfora de nada.


Não há mensagem alguma para leitor algum; é o trabalho que surge quando fazemos literatura.


O livro infantil é um álbum ilustrado. Há a conversa com o ilustrador e tudo o que nasce a partir desta parceria. O texto se beneficia das imagens e vice-e-versa. Não só se beneficia, mas enriquece e complementa. Livro infantil tem que ter imagem; em geral, são elas as anfitriãs do primeiro contato das crianças com o livro. O título precisa ser atraente, enigmático, convidativo. Às vezes é tudo o que temos para atrair o olhar do adulto e da criança leitora. Se a provocação for boa, o livro é aberto e texto e ilustração tentarão transportar o leitor como uma pessoa numa boia descendo um rio.


A escolha do tipo de letra, caixa-alta ou de imprensa, numeração de páginas ou não, faixa etária (ou em qual estante o livreiro colocará seu livro), são pontos sensíveis à literatura infantil, embora acredite que os livros infantis mais bacanas que conheço, penso não corresponder a alguma faixa etária específica mas a adultos, adolescentes e crianças que se dispuserem a ler, folhear, ler para alguém ou então receber a leitura feita por um mediador.


De qualquer forma, o livro surgido por conta de um mote, algo que se queira fazer tocar ou uma história bem contada, culmina (se o projeto der certo, claro!) num texto de estrutura narrativa. Esse tipo de texto amplia o mundo de cada um e ao mesmo tempo socializa experiências que são do campo coletivo. Ele é generoso por possibilitar à criança identificações, pensar outras possibilidades para situações vividas e talvez, o mais fundamental, possibilitar a imaginação, o sonho, a criação.


A ideia para o meu segundo livro surgiu em julho de 2008, a partir da palestra de uma escritora nigeriana chamada Chimamanda Ngozi Adichie, sobre seu livro Meio Sol Amarelo (Cia das Letras, São Paulo: 2008). Ela falava a respeito da construção de identidade a partir dos relatos de seus familiares e pessoas próximas que viveram a Guerra Civil da Nigeria. Dessa maneira, pelas bordas, diz ter encontrado um lugar na família. Refletindo sobre a palestra, uma questão em especial me chamou atenção: o que cada um de nós sabe sobre a trama que nos sustenta em que há constantes identificações e discriminações? Foi na tentativa de ampliar essa questão que escrevi Vestido de Menina (ed. Peirópolis, 2011). “Tinha fio que era comprido e parecia percorrer uma família inteira, pros lados, pra cima e pra baixo. Outros eram curtos e interrompidos; truncadinhos, abarrotados. Tinha fio brilhante, dourado, cor de rosa. Fios gargalhentos, esfuziantes, como os brindes dos quais ela podia participar quando comemoravam momentos importantes.”


Numa espécie de filiação deste segundo livro, dois, três anos depois, a partir de uma fala que ouvi certa vez em que uma mulher dizia com convicção não poder faltar nada ao filho, comecei a escrever o texto que virou livro em 2016 (Não Falta Nada, ed. Peirópolis, 2016). Como construo meu próprio percurso dentro da minha família? O mundo é realmente tão perigoso quanto meus pais parecem mostrar? Posso desejar coisas diferentes do que meu pai e minha mãe pensam para mim e continuar sendo filho deles? Tinha essas perguntas na cabeça e fui fazendo um menino de oito, nove anos, tomar as perguntas para ele. Pensei que o livro poderia começar assim… “Desde que eu nasci, tinha sempre alguém do meu lado. Quando chorava, ouvia um barulho engraçado, grosso e acelerado: era minha mãe correndo pelo corredor em direção ao meu berço! Nem eu sabia direito porque chorava, mas ela parecia saber e colocava uma chupeta na minha boca. Vai ver era falta de chupeta” – a imagem da mãe e do pai que acreditam proteger os filhos dos “perigos” do mundo e, por conta disso, acabam por atropelar tempos, iniciativas e descobertas por parte das crianças.


Nos livros que lemos e o que nos faz rir: qual o afeto? Nas brigas, discussões, no jogo, no reencontro: quais os diálogos, os gestos? Nos sonhos: quais as imagens, o enredo? Qual a cena que se desenvolve ao teu lado no metrô, na calçada, na porta da escola, no almoço de família? Qual o conflito? Essas pesquisas são a farinha, a água e o sal que fazem o pão, que alimentam e tecem um texto. A sova da farinha misturada à água, o sal e o tempo é o trabalho de artesão com as palavras, a forma, o ritmo, os cortes, o dança do texto na página.


Mote ou história, o que não quero perder de vista é a dimensão da narrativa, do contar uma boa história. Desta dimensão, parece tratar a literatura. Como dizia Antonio Candido, aquela que deveria ser um direito básico do ser humano, assim como a arte. Alargar o olhar.


Tatiana Filinto nasceu em São Paulo em 1973. "Publiquei três livros infantis e contribuí com alguns contos pela primeira vez não direcionados às crianças, num livro chamado Orelhas. Trabalho também como psicanalista atendendo adolescentes, adultos e crianças em meu consultório, atividade que amo. Participo, todas as terças-feiras, há vários anos, de um grupo de leitura e escrita chamado Djalma, o que me dá muito prazer também."

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