Escrita em processo
Rotina
Não acredito em excesso de preparação. É sentar e escrever. E escrever sempre será um processo solitário, que exige disciplina. Tento escrever todos os dias, começando de manhã.
Se um texto flui com muita facilidade, provavelmente vou desconfiar, vou sentir que estou no caminho errado. Claro que ele não pode ser impossível de manejar, mas acredito que as escolhas são críticas. No meu caso, cada palavra ou frase é contemplada com o rigor de quem observa a luz tentando adivinhar exatamente em que momento do dia se está.
E só vou saber se a coisa funciona mesmo se está no papel. Sei que não é fácil admitir que a escolha feita não foi ideal, mas para que seja pelo menos reconhecida, tem que estar no papel. Daí a importância de escrever sempre. Eu me pergunto se o material é bom o tempo todo. Releio uma frase e não fico feliz. Preciso mudar. Recalibrar, achar o tom.
Diria que meu lugar de escritora não está tão longe de Macondo: insônia e amnésia são parte do meu processo. E é importante lembrar que fazer um livro não é nenhum tipo de terapia: não vai me tornar necessariamente um ser humano melhor.
Voz
Não há escolha definitiva. Fiz dois romances na primeira pessoa do singular. Em Onça Preta era uma adolescente, em Acre um cara beirando os cinquenta. Em ambos os casos tentei a terceira pessoa, só para ver como soava. Em Onça, também tentei a mesma protagonista contando a história, mais de trinta anos depois. Passei um mês na primeira página. Aquilo não engatava de jeito nenhum. Até hoje eu me pergunto o que houve ali e me consolo dizendo que se soubesse, não teria nem tentado. Acredito que para saber se algo funciona mesmo, tem que colocar no papel.
Herói
Acho que a escolha da narração na primeira pessoa, até agora tem a ver com um certo heroísmo. Não é o tipo de herói que vai morrer com as botas postas, mas de alguém que sai por aí buscando-se a si mesmo. Que se pergunta quem é e por que é assim. E geralmente não acontece muita coisa na vida dos meus personagens.
Silêncio
Existe uma sensação nas minhas histórias de que quem fala sempre está meio sozinho. Há um silêncio que opera ali, deixando em evidência o que não se consegue apagar da memória. Talvez seja eu mesma operando, sem saber direito como direcionar o pensamento e como seguir a história. Tendo a gostar de uma voz espectral, que parece que sai das paredes, que pode ser nossa voz interna, ou o pensamento de outro personagem que se confunde com a presença quase indiscreta do leitor que penetra na história. Esse jogo de espelhos, que não deixa de ser um jogo do consciente, me fascina.
Desvios
É por isso que não ignoro os acidentes, os desvios súbitos em um texto. Um relato vai se tecendo passo a passo, mas aos tropeços. Gosto desse ruído na linguagem, da falta de linearidade ao contar algo. É como se houvesse algo que não se encaixa. Gosto de ouvir um personagem insistindo, dando voltas no pensamento, como se tentasse entender o que realmente está querendo dizer.
Isso vem de escutar a conversa alheia, mesmo. Seja no ônibus, no boteco ou em uma fila de banco.
Descrições
As descrições para mim têm um crescendo que atingem partes invisíveis da história. São quase como um quebra-cabeça, que me ajuda a formar uma paisagem geral. Penso naquelas mil peças que formam o mesmo céu sem nenhuma nuvem, praticamente sem variação do azul. Que desespero. As descrições alcançam um personagem, podem até sair da sua boca, mas o sobrepassam. Dão continuidade e sentido à história, e envolvem a minha atenção o tempo todo. São aspectos indiretos, que não se explicam à primeira vista, mas que trazem um equilíbrio para o meu relato.
Impacto social
Associo as descrições a estar nua emocionalmente diante de um texto. Nem sempre o que quero contar está ao meu alcance. A dor é difícil ou quase impossível de descrever. Ou como retratar, por meio do olhar de um sujeito parado na estrada, séculos de injustiça, marginalização e desprezo social? Qual é a dose necessária de realismo? Vou tateando as possibilidades, um texto cru lavado por uma luz branca de inverno é a melhor opção? Para que uma descrição tenha poder de transcendência, preciso abordar o que é doloroso socialmente?
Não acho que um texto de ficção tenha que nascer engajado em uma esfera política. Dentro do processo artístico é muito importante que nada disso interfira, aliás. A liberdade tem que ser total para abordar a complexidade humana. E se o texto for bom, sempre vai ter impacto social.
A jornalista e escritora brasileira Lucrecia Zappi nasceu em Buenos Aires em 1972. Atualmente mora em Nova York, onde cursou mestrado em Criação Literária pela NYU. Publicou dois romances: Onça Preta (Benvirá, 2013) e Acre (Todavia, 2017).